VÍNCULOS ALÉM DA CONSANGUINIDADE: O AMOR E A IDENTIFICAÇÃO COMO PRESSUPOSTOS BASILARES DAS DIVERSAS MANIFESTAÇÕES DE FAMÍLIAS NA ATUALIDADE
As expressões “ubi societas ibi jus” e “ubi jus ibi societas” nunca tiveram tanto significado quanto atualmente apresentam. Isso porque, o que as expressões em latim querem dizer, é que o direito carrega enorme responsabilidade em adequar-se às mudanças sociais da época em que se é vivida, sendo a recíproca também verdadeira. Ou seja, caminhando juntos, a sociedade e o direito são uma unidade e devem ser interpretados e modificados na mesma intensidade de suas mudanças.
Seria então por esse motivo que o Registro Civil das Pessoas Naturais abarca tantas alterações legislativas? A resposta é claramente positiva. O RCPN, como é conhecido, é uma das competências da esfera extrajudicial responsável por consignar atos e fatos da vida civil do indivíduo, que interfere diretamente em sua vida privada, de tal modo que publiciza acontecimentos como o nascimento, casamento e óbito.
No que tange a prerrogativa de receber um registro ao nascer, o direito possui enorme incumbência, principalmente acerca da filiação. E, é motivo de comemoração que atualmente as diversas manifestações de famílias são abarcadas pelo direito, não limitando-se mais a retrógrada concepção de que a entidade família constitui-se apenas por um casal heterossexual progenitor de filhos biologicamente concebidos.
Por ocasião de mudanças sociais, o direito brasileiro salvaguarda indivíduos que se identificam e se intitulam como sendo familiares, apenas pelo amor incondicional que manifestam intimamente entre si. Um exemplo desse novo molde familiar é o reconhecimento socioafetivo de filiação, derivando a multiparentalidade.
À luz da Constituição Federal de 1988, que agraciou a liberdade e a autonomia privada, o Conselho Nacional de Justiça editou, no ano de 2017, o provimento nº 63 e, mais tarde, no ano de 2019, o provimento nº 83, ambos sobre esse assunto.
Essencialmente, o que essas normativas trouxeram de mudança para a esfera extrajudicial foi a regulamentação, mais simplificada e com menos morosidade, do registro do vínculo socioafetivo concomitantemente ao biológico, a fim de assegurar todas as garantias patrimoniais e extrapatrimoniais estipuladas na legislação, sem que, por imposição legal, conste qualquer tipo de diferenciação entre as duas origens da filiação.
Assim, não obstante esteja estipulado nos provimentos supramencionados o procedimento correto a ser seguido, realiza-se a elucidação a seguir da forma como o reconhecimento socioafetivo extrajudicial deve ocorrer, para melhor entendimento.
A priori, é imprescindível destacar que, apesar da seção II, do provimento 63 tratar da “paternidade socioafetiva”, pode o reconhecimento se dar também por “maternidade socioafetiva”, sendo, portanto, um equívoco do legislador ao intitular de tal forma.
No que se refere aos requisitos propriamente ditos, é necessário que o menor a ser reconhecido tenha idade mínima de doze anos, não delimitando uma idade máxima. Ademais, deve o reconhecimento se dar de forma voluntária, em qualquer Ofício de Registro Civil do país, não sendo necessário que seja naquele em que fora realizado o registro de nascimento.
No termo de reconhecimento da filiação de que trata o artigo 11 e seguintes do provimento nº 63/2017, deve, obrigatoriamente, ser colhida a assinatura do menor e dos pais biológicos. Assim, na falta da assinatura de qualquer um destes, deverá o processo ser apresentado em juízo. Já no que tange ao maior de dezoito anos, não se faz necessário a assinatura dos pais biológicos. E, para os menores de doze anos, o rito a ser seguido para todo o processo do reconhecimento socioafetivo é o judicial.
Outrossim, com o advento do provimento nº 83/2017, o legislador elencou no artigo 10-A, parágrafo 2º alguns dos meios de provas admitidos para comprovar o vínculo entre o registrado e o pai ou mãe socioafetivo. Ressalta-se, porém, que, fica a cargo do Oficial registrador a coleta e análise dos documentos que achar necessário para a demonstração da afetividade. Inclusive, se este suspeitar de fraude nas declarações a ele apresentadas, deve recusar a prática do ato e remeter o processo ao juízo competente.
Superada as identificações e comprovado o vínculo, o registrador deve remeter ao Ministério Público o termo de reconhecimento devidamente preenchido e assinado, os meios de provas colhidos e os documentos de identificação dos envolvidos. Sendo favorável o parecer ministerial, realizar-se-á a averbação no registro. Não obstante, se desfavorável, o Oficial arquivará o processo e informará os interessados. Destaca-se que essa negativa do parquet não obsta que as partes requeiram o reconhecimento de forma judicial.
Em suma, nota-se que a legislação, apesar de caminhar em passos lentos, preocupa-se com a real adequação às mudanças sociais. E, o CNJ como órgão regulador da justiça nacional, deve estar constantemente preocupado e comprometido a garantir dignidade e formalidade às relações civis.
REFERÊNCIAS
BRASIL . Constituição Federal de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 16 mar. 2021.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. Paternidade Socioafetiva e Pluriparentalidade. Recurso Extraordinário nº 898.060. Relator Ministro Luiz Fux. Disponível em: <https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE898060.pdf>. Acesso em: 16 mar 2021.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº 63, de 14 de novembro de 2017. Institui modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito, a serem adotadas pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais, e dispõe sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva no Livro “A” e sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida. Disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/files//provimento/provimento_63_14112017_19032018150944.pdf>. Acesso em: 16 mar 2021.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº 83, de 14 de agosto de 2019. Altera a Seção II, que trata da Paternidade Socioafetiva, do Provimento n. 63, de 14 de novembro de 2017 da Corregedoria Nacional de Justiça. Disponível em: < https://atos.cnj.jus.br/files//provimento/provimento_83_14082019_15082019095759.pdf>. Acesso em: 16 mar 2021.
DE LIMA, Andressa Gabrielly Nogueira et. at. Reconhecimento de paternidade e maternidade socioafetiva na esfera extrajudicial. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-de-familia/reconhecimento-de-paternidade-e-maternidade-socioafetiva-na-esfera-extrajudicial/>. Acesso em: 16 mar. 2021.
PEREIRA. Fernanda Amadio Piazza Jacobs. Adoção e reconhecimento de filiação socioafetiva – Um comparativo entre os institutos. 2020. Migalhas Notarial e Registral. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/335153/adocao-e-reconhecimento-de-filiacao-socioafetiva—um-comparativo-entre-os-institutos>. Acesso em: 16 mar. 2020.
Artigo por Suelen Grasel – Jurídico Officer Soft